sexta-feira, 31 de julho de 2015

UMA DAS MIL NOITES: O CONTO DE HOJE















UMA DAS MIL NOITES



Teme a hora em que a porta do armazém do Esteves é baixada com estrépito, quando gente começa a se despedir das ruas, outras vozes vão chegando, os pios de pardais escasseiam até soar, no máximo, um último apelo de chupim, depois os carros que passam, as obsoletas lâmpadas em pratos nos postes da rua acendendo-se pálidas, a tosse de Mané Diogo, os rogos de Alzira, a criança que chora (e chorará pela eternidade afora, sem consolo possível, porque a mágoa é incurável e ninguém nos ouve), um que outro pedinte inesperado que nem chega a entrar na pensão, rechaçado por Dona Genoveva.

Teve a certeza de que não escaparia dali no dia mesmo em que deu o nome e os documentos para o italiano, que o mediu e não o considerou melhor ou pior que os hóspedes constantes ou circunstanciais, apontando-lhe o longo corredor que acaba num quintal, seu quarto dando para uma parreira que dá uvinhas mirradas, sempre verdes, para o pátio da máquina de lavar, das duas ou três bicicletas encostadas, do pequeno galinheiro. Quatro criaturas brancas e nenhum galo, dois poleiros, um cocho, seu limite.

Não haveria mais para onde fugir. Disse “viúvo” e se acomodou. Ficaria conhecido na cidade em pouco tempo, “o da pensão”, embora fosse também o do bar Gigante, do banco da Praça Monsenhor Padilha, em frente ao chafariz cercado por duas sereias com suas trompas, o solitário do sobe e desce do footing da rua principal, portador de certo caderninho. 



Porque anota, para ninguém, o que só ele pode ver, por condenado a testemunhar. A louca e seu inseparável leque, seus brincos e colares de fantasia, absolutamente sozinha, muda, engolindo algodão doce cor de rosa. Os velhos que rondam o bico da praça, nas proximidades da churrascaria, pagando para quem os queira ouvi-los falar com cuspe entre dentaduras, para as recrutas cada vez mais novas, uma de talvez quinze anos que não sorri e dá a mão ao sessentão que lhe compra sorvete de casquinha. 

Pior é olhar para o que está ali – as paredes, o guarda-roupa com um pozinho amarelo nos cantos, inútil para matar as copiosas e impenitentes baratas, a folhinha de Nossa Senhora Aparecida marcando a data da viagem para L. (se significa uma viagem o pegar um ônibus e enfrentar a estrada recém-asfaltada por meia hora), as coisas que alguns hóspedes deixaram escritas e que o italiano é sovina demais para apagar com nova mão de tinta, os lençóis amassados, a revistinha inevitável enfiada sob a porta (outros aceitaram, um dia ele terá que aceitar também) – e então a lembrança de Ana precisará ser buscada em algum canto da cabeça escura, no desespero espesso, sem mínima fresta, para que não pense, para que não sucumba, ela em seu vestido lilás, ao vento, ela procurando-o na festa com aquele olhar de perda que às vezes o assustava tanto, ela, ela... – nada pode, no entanto, contra o rádio de Mané Diogo, ligado em volume máximo no pregador evangélico que garante que Deus é maior.





A mulher que o olha há várias semanas é velha, mais tristemente velha porque tenta ocultá-lo com o batom, o rímel, os brincos, os vestidos de estampados vivos, e segue, com o perfume que julga inebriante, alguns passos à sua frente, rumo ao parque de diversões. Registra: ela viu interesse imprevisto na esquina e lá está, conversando com o ás da motocicleta, de uns dezessete anos se muito, sadio, obtuso e vital como tudo a que temos de servir, a que é necessário pagar. No footing, não falta quem o olhe, mas parece o escolhido das piores, das vencidas, das que já nada podem esperar do sobe e desce, e senta-se no grande banco em frente ao hotel Cacique para ver os rostos que fluem, inúmeros, inúteis, ninguém que possa ser um amigo, nada que possa estar livre da necessidade e do desencanto letais. Bem que o baixinho à entrada do hotel estica a cabeça, curioso pelo que possa estar anotando, e lhe pergunta se não quer ir consigo a certa casa de muita cerveja, ali te fazem uma “peta” por menos de vinte reais. A torre gótica da igrejinha do centro, o relógio que não funciona, as luzes, os bancos doados pelos eméritos já bem mortos, o cheiro de pipoca, o carrinho de quebra-queixo, os globos, os muitos besouros de outubro sobre os quais se pisa nas zonas de luz, o anúncio do circo, a passagem da bicha de sapatos vermelhos de salto na mão, que corre dos moleques que querem atirar nela um sapo morto e gritam e riem.
Choverá? O céu é de um azul cobalto claro, fundindo-se a uma zona escura de nuvens, e ele pensa na chuva que caía sobre o túmulo, na última visita. O belo rosto em preto e branco na fotografia tinha sido coberto pelas pichações, que lá também estavam chegando, “não há jeito de cuidar dessas coisas, professor, a moçada entra no meio da noite...”, e então a decisão de não levar mais flores, de nada mais fazer, de apenas voltar, sempre olhar, e esperar o quê? Ela gostava da chuva, corria com seus vasinhos a pôr flores e folhagens para a festa dos primeiros pingos, sorrindo. Um sorriso que acaba ali na boca de dentes postiços do vendedor de chifrinhos de amendoim torrado que tenta acordá-lo; é preciso pagar. Está em frente ao cine Rubi e entra sem saber por que. Suspiros, ofegos e gemidos da loira às voltas com o negro na tela. Cinco ou dez cabeças esparsas no escuro, e não há como não olhar para o alto. Os movimentos de alguns espectadores são inequívocos enquanto os dois se engalfinham na tela ao som das “Quatro estações”. “Não gostei desse. Sofisticado demais...”, alguém sai do escuro dizendo. Ele também sai e só então lê o título do cartaz: “As taras de Rosana”. Deus, onde estás? Engole mais amendoim.



Precisa, de vez em quando, sentar-se em qualquer lugar, porque se cansa com facilidade, e então se lembra da idade, do peso, dos exercícios que nunca fez nem fará, das recomendações inúteis de Ana. Inesperado tico-tico cantando triste em alguma das velhas sibipirunas da praça. O banco molhado. Latas de cerveja e refrigerante cobrem o passeio, alguém que bebeu demais está encharcado e esquecido num banco, o chapéu cobrindo a cara, e mais uma vez não há para onde ir, como nunca houve. 

Pudesse conversar com alguém... Mas, teria outro assunto que não Ana? Na última vez que se sentara no Gigante, pedindo cerveja, um turco muito magro se aproximara e fizera a sua caricatura. Pegara no traço rápido de esferográfica principalmente o hilariante de seu ar desgostoso. “Você é um triste”, dissera solene e untuoso, como um locutor de rádio. O que conversaram, ele mal se lembrava. Na verdade, só o homem falara. De sua família tirana que, por ele solteirão, já não o queria mais. De suas bebedeiras, de seu organismo que podia suportar não lembrava quantas cachaças uma atrás da outra e, veja só, os idiotas o achando alcoólatra. De dados, dominós, cartas. Por fim, quisera até lhe vender um terreno, a preço de ocasião. Não precisava pagar pelo desenho.

Enfrentar a cara do italiano no refeitório, vendo televisão até madrugada. Dona Genoveva, que jantava tarde, pegava grandes pedaços de carne da geladeira para o almoço do dia seguinte, ajudada por Alzira que segurava o facão, submissa. Passadas as crises de rogos, gritos, orações berradas no quarto que a italiana fechava por fora para isolá-la, cobrindo de xingamentos e resmungos o que lhe parecia menos insanidade que capricho, era apenas essa ajudante de cozinha que viera morar – definitivamente, ao que parecia – na pensão, sempre vestida de cores escuras, idade indefinida, fugindo dos olhares dos hóspedes, se embrenhando pelos quintais, de onde recolhia seus gatos. 

Noutro canto, cotovelos postos sob a mesa, os indicadores se encontrando sob o queixo, a boca discretamente (ele o supunha) pintada, os enormes olhos castanhos, trêmulo, interessado ora na televisão ora na passagem de algum hóspede novo, Agenor, que já voltara da rua, olhava para ele. Era cansativo não poder ser nem mesmo vagamente gentil com a figura, tamanha a sua facilidade para se apaixonar por qualquer espécime masculino que o tratasse com alguma consideração e daí convidá-lo para ir ao quarto. Mané Diogo deixara em cada uma das mesas um exemplar da revistinha editada por sua seita e também já voltava, paletó, gravata e cabelo duro de muito gel, dizendo um “boa noite” para todos com o insuportável ar de perdão universal (sem incluir Agenor) que adotara. 

Acabrunhava-o pensar que tinha que se recolher, era melhor ficar ali, vendo o que todos viam na televisão – concessiva, Dona Genoveva ficava junto a alguns hóspedes para ver programas que chegavam a ir até meia-noite. Ele custaria a pegar no sono, de qualquer modo. A gataria de Alzira percorria o quintal, dentro da madrugada sempre alguém a levantar-se para conversar em algum canto do corredor, um cicio aqui e ali, o que talvez fosse um pequeno gemido de Agenor, a descarga do banheiro coletivo, o canário do reino que, vendo luz acesa, julgava que era dia e se punha a dobrar indefinidamente.





Empurra a revista de mulher nua para fora do quarto, por sob a porta, e a questão é ir ficando quieto, tentando reduzir os ruídos exteriores à força de seu próprio silêncio. Pelo corredor, corrida de passos macios, uma risadinha abafada e, depois, a porta do banheiro batida com força, um palavrão. 

Em algum lugar, Ana flutua? Horror a essa idéia de sobrevivência do espírito, insensato que esses kardecistas (pois Dona Genoveva tinha idolatria por um exemplar muito manuseado e rasgado de “Nosso Lar”) não entendam que só o desaparecimento completo do eu pode provar alguma bondade divina. Ela na terra, no sono sem traço algum de identidade, abençoada, a chuva adensando a noite. Sente uma barata lhe subindo pela perna, ignora. Alzira colocara amaciante perfumado em excesso no lençol. O canário do reino de novo acredita na luz passageira. Uma coruja. A tosse de Mané Diogo.

Sabe que não irá embora. É olhar para a folhinha de Nossa Senhora Aparecida e ver o dia isolado por um círculo vermelho. Irá, sempre, no máximo até L., até o túmulo. Os italianos se desentenderam com alguém, lá na frente. Oh, Deus, três e dez, três e doze. Vira-se, talvez de bruços. Ouve as pancadinhas surdas, mas ansiosas, na porta. Não vai levantar-se para dizer não, a figura que recolha a revistinha e tente outro quarto, algum dos hóspedes cujo tesão frustrado autorize a supressão de repulsas, alguém que aceite enfiar num buraco voraz, no escuro. 

Lembra uma reza para dormir que a mãe lhe ensinara. Repete-a dentro de si, sem eco no seu próprio escuro, sem fé. A barata continua a lhe subir pela perna. A revistinha volta a ser enfiada sob a porta. Não olha. Cinco da manhã e alguém poderia, por pena, não acender de novo a luz do corredor para que o canário do reino, iludido, não tornasse a cantar

quinta-feira, 30 de julho de 2015

DO OUTRO LADO: QUEM É O VIZINHO?

















DO OUTRO LADO





“Você não pode dormir”, dizia-se, e engolia o café frio, mastigando pão velho, vez em quando olhando para a casa ao lado. Dali, as janelas de uma cozinha, de um quarto, o vitrô do banheiro talvez. “Muito bem, é questão de esperar...”, e era outro cigarro aceso, uma palpitação, uma como que vontade de ganir, de desabafar com sons sem sentido.

Esperar. Ia ao banheiro e voltava. Alarmes falsos da barriga. Detestava a sujeira da pia, a torneira que era impossível fechar por completo, a farmacinha gordurenta, ir e vir lépido de lagartixas, o silêncio, o vaso sem tampa. A todo momento, pensava no que não devia, suspirava pelo que era uma tolice arrematada, uma cisma, não podia haver ninguém do outro lado.

Ora, estava morando ali havia um ano e tanto, pagando contrariado um aluguel baixo (porque aquela ruína não merecia pagamento algum) e a outra casa, separada da sua por um terreno baldio exíguo, nunca tivera morador. No entanto, jurava que, semanas atrás, uma sombra se movera, muito rápida, por trás do vitrô. E então o portão fora aberto e alguém saíra correndo. Em vigília, com o cigarro, imobilizado pelo calor, pelo desânimo (para quê ir a qualquer lugar? a cidade morta, mais que morta, àquelas horas), vira de novo alguma coisa mover-se no quintal. Outro sinal por trás do vitrô na tarde seguinte. A mão na testa, depois alisando a cabeça. Alguém que se penteava. O gesto era definido, um homem. A seguir, nada. Teria que conversar com Dona Hermínia.





Era o que menos desejava: saber alguma coisa trivial como sim, havia alguém, um proprietário que às vezes retornava, um interessado no imóvel, um visitante conhecido da velha xereta onisciente. Olhar para a casa da perspectiva da rua, como agora olhava, era desolador – não apresentava mistério maior, medíocre, quase indistinta em seu branco mais que desbotado, o mato livre na frente, um portão de gradis aos pedaços, uma varanda que servia de abrigo para vira-latas na chuva. Mas a casa seguinte, ruidosa, viva, era de Dona Hermínia. Que já o vira, enquanto pendurava roupa no varal, e estava a postos, esperando. O quê? Como ela sabia que ele queria lhe falar? Cotovelos no muro, apertava os olhinhos atentos sob os óculos.

- Bom dia, moço. – O cumprimento parecia trazer um desafio: “Veja como sou capaz de conversar com o senhor, apesar de sua indiferença e seu orgulho todo.”

-... dia. – Olhava para os sapatos, não sabia como começar.

- O senhor trabalha no Eliseu Moreira, não?

- Sim. – Apoiou-se na estaca de uma arvorezinha, fugia ao olhar inquiridor, voraz.

- Não sei como consegue viver aí. Vez em quando, penso em ajudar o senhor, lavo roupa pra fora, se precisar... Já deviam ter derrubado essa casa. Como é que não despenca? Garanto que é daí que vêm todas as baratas daqui do quarteirão...

Pensou no assoalho afundado, nas tábuas soltas, ela tinha razão: a casa se enchia de rasteiras e voadoras, inútil brandir inseticidas, matá-las de outro jeito nem pensar, odiava o barulho do esmagamento. Mas, tinha sido assim – insistira para morar ali, poucos quarteirões do centro, do escritório, preço ao alcance, a proprietária uma velhinha indiferente, das que nunca saem de casa, à espera do fim. Não havia por que fazer a mínima reforma, apenas a localização tinha algum valor. Sim, mas era de outra coisa que queria falar. E como perguntar? A própria falta de assunto levou o olhar da vizinha para a direção desejada. Ela apontou:

- Essa outra aí ninguém quer.

- Por quê? – Teve que disfarçar um pouco o interesse que o tomava.

- Sabe Deus! Onze anos que moro aqui, nunca vi ninguém. Parece que é de um viúvo, da capital, mas não pude saber. Uma mulher sozinha morou aí, mas faz muito tempo, antes de eu vir pra cá, me contaram. E é boa ainda, não? Precisa de pouca reforma. - Ele foi se afastando, com um “até logo” que a mulher não ouviu, ocupada em descrever a cor com que pintaria a casa, o que faria no lugar da varanda, onde aumentaria, o que suprimiria. Voltou para dentro de casa sem que ela percebesse.





Era o gesto que o obcecava: lento, tranqüilo, a mão alisando a cabeça, um homem que estava à vontade numa casa onde não poderia, não seria lógico haver alguém. E os passos, e aqueles gradis do portão sendo empurrados com pressa no silêncio de uma madrugada sem grilos, depois o alarme do cachorro. O vulto correra, precipitara-se em direção ao centro, fora tragado por uma esquina. Por que o imaginara alto, ágil, capaz de correr muito bem? O cigarro apagado no parapeito, ele à janela examinando a casa, esperando um sinal mínimo, um ruído, uma sombra. Nada. O trecho do quarteirão era pouco iluminado, o poste de lâmpada de mercúrio muito mais adiante, o terreno baldio ali, pilhas de tijolos que envelheciam, que recebiam trepadeiras sinuosas, uma roda de bicicleta velha ao léu, algumas conversas na rua e o rádio de Dona Hermínia ligado no horário da Ave Maria. 

Isso não mudava nunca. Ela devia ter, sob o aparelho, um copo de água para ser benzida, como sua mãe fazia. Ficou triste. Decidiu fazer um café. Alguém na rua passava rindo, ouviu um pedaço obsceno de conversa. Irritou-se sem saber por que. Um palavrão como aquele teria feito sua mãe morrer de vergonha, a cara afundada nas mãos, desaparecendo rápido para a cozinha, para o quarto. 

Estava na casa de infância, de repente. Nada tinha de parecido a essa, mas identificou algo semelhante, familiaridade antiga, no quarto, na saleta, na cozinha com a mesa coberta por uma toalha de plástico estampada de frutas e legumes. A cristaleira ali, no assoalho que pendia, fora da mãe. Os bibelôs dela, gatinha e filhotes, lembranças de Aparecida do Norte, um leque, um rosário, pomba de porcelana com o biquinho quebrado. Do pai, o retrato sério, ar entre embaraçado e hostil, um bigode bélico.

Um passeio noturno, outro dos inúmeros inúteis, circulares. Não seria possível encontrar ninguém em especial, deixava-se envolver por conversas bestas num bar da praça, com bilhar e flipperama, dava cigarros, dividia cerveja com um ou outro. Incapaz de fazer parte de qualquer grupo. Ruim na sinuca. Bebida, tinha limites. Afonso da farmácia era quem mais lhe dava atenção. Aparecia tarde, começava a beber e era quase impossível pará-lo, porque era quando conseguia conversar, enfim, abrir-se, alegrar-se – perdia uma timidez que, quando sóbrio, o tornava quase inerme, bom apenas para as injeções, tão voltado para seu trabalho e tão lacônico que exasperava. 

Então, o assunto passava a ser mulher. Saindo dali, Afonso ia à casa de Fulana, rua tal, um bairro pobre, freguesa de injeções, o marido viajante. Com a cara de seriedade, eficiência e boa educação, não se adivinhava nele o lascivo que era, ou se fazia sempre de seduzido, de envolvido um tanto contra a sua vontade, elas as taradas, ele o objeto com uma ereção a contragosto. Nunca era possível conversar com muita coerência, a bebida impedia, mais gente chegando, outros amigos do farmacêutico, ruidosos, o que o fazia ficar à parte, espectador apenas. De frente para o bar, o bico da praça, para ali iria, acabaria se embrenhando pelas veredas concêntricas, tudo quieto, bancos a escolher, só o grave dos sapos na fonte, o vôo dos curiangos, um infeliz ou outro jogado nos caramanchões, nos bancos do coreto. Para quê ficar? Mais um cigarro, era voltar para casa, tomando outros quarteirões, mas os desvios sempre sem atrativos, desesperadamente iguais; anos e anos sonhando ir embora da cidade, mas ficara demais, ficara tanto que outro mundo, outros hábitos, eram impensáveis. 

Com quê um gato brincava mais adiante, recuando em pulinhos ágeis, avançando com patadinhas? Não: uma caranguejeira. Fez um contorno exagerado da cena, uma esquivança de tremores. Covarde para isso, para só ver, medroso dos cães inesperados na rua, dos tipos insondáveis que passavam sem boa-noite.

Na volta para seu quarteirão, lá a casa, nenhum movimento, o resedá, os escombros do terreno baldio, uma quietude que precisava ser rompida por um gesto, um acontecimento. Entrou batendo a porta com força. Colocou música, acendeu todas as luzes, ligou a televisão. Tudo que fez – o café, o banho, o trocar os discos, espalhar revistas e livros, arranjar a cristaleira, remover cadeiras – foi com a aplicação frenética de quem tivesse a maior das urgências, como quem tivesse uma vida de tempo todo ocupado, repleta de afazeres. Por fim, cansaço. Jogou-se na poltrona da saleta, a de couro preto, que nunca tinha saído da família. Ouviu. Batidas a princípio suaves, depois bem definidas, de gente grande, na janela. “Quem é?”, perguntou, meio sem voz, imediatamente pensando em ir buscar uma faca na cozinha, alguma coisa com que se armar porque, fora de dúvida, a coisa era para hoje. “Quem é?”, repetiu. Sem resposta. Um longo silêncio, o quê fazer, o quê pensar? Nada de abrir a janela. Perto dela, ao lado da escada de dois degraus, um alto pé de hibisco. Ouvia o vento nas folhas. Não abriria. 

Mas, não houve mais batidas. Não saía de frente da janela, recuado, a faca na mão, preparado, mas aos poucos sua rigidez foi-lhe parecendo estúpida - contra quê reagia? – e relaxou, sentou-se. “Estão brincando comigo. Desgraçados!”, suspirou, mordeu as costas da mão, não soltou mais os dentes, permaneceu ali. Nem cogitar de dormir.







Era preciso prestar atenção. Depois do almoço, ao sair para uma voltinha no quintal, encostou-se ao muro. Olhou para o terreno baldio, de onde vinha um cheiro de carniça. Viu o cachorro morto. Conhecia-o. Um perdigueiro magro, sem dono, que de vez em quando o seguia por um bom trecho quando voltava à noite, choramingando quando ele fechava o portão no último passo. Pensou em enterrá-lo, seu vago amigo. Não. Fazer nada. O olhar subia para a casa, para o vitrô. Nenhum sinal. Sentia uma espécie de ódio – que controle ter, qual conhecimento era possível com alguém ou algo que brincava de não ser, não definir-se, com tamanha capacidade de atormentar? 

O gesto no vitrô fora nítido. Existia sim. Era um sujeito odioso. Já o tinha inteiro na cabeça: alto, bem vestido, forte, enxuto, com certeza bom de briga, bom de mulher, talhado para a vida viril, dominador convicto, um tipo certo. Tinha que odiar alguém assim, dotado para a humilhação, para a admiração e o desespero dos fracos. “Comigo não. Você não vai me aterrorizar”, dizia. Pensava em emboscá-lo – como? Primeiro, era preciso que definisse, que se mostrasse. Prestar atenção, atenção, atenção.

Então, o movimento do escritório, para o qual mal erguia a cabeça da máquina de escrever, interessou-o. No balcão, o quarentão de bigode, bem vestido, firme e indiferente. Um fazendeiro. Um tipo que conversava com o Eliseu, que se punha de queixo tão erguido quanto o do chefe. Por que os olhares o atravessavam, não o viam? Na rua, o sujeito que ia à sua frente, de pasta sob o braço, apressado. Virava-se, e a cara nada tinha de misterioso, de incriminador. Viu, na mesa do restaurante, um desconhecido tranqüilo que enfiava a mão pela testa, devagar, alisando as entradas, indo até o fim do cabelo com aquele afago. Parecia muito gentil, o hipócrita. Retalhava um filé com brócolis. Na esquina do restaurante, dois ou três ociosos, com caras vagamente hostis e gozadoras, e nada. Não sabia quem procurava. Tinha um rancor difuso contra toda a raça masculina pelas ruas. Não conseguia travar uma conversinha, por menor e inócua que fosse, sem uma ironia, sem querer inquirir, acusar, culpar. Foi à farmácia do Afonso e ele veio atendê-lo, saindo dos fundos, de onde vinha seguido por uma mulher gorda a puxar uma criança que tossia tristemente. “Qual é a bronca?”. “Pode me vender um calmante, fiado?”. “Você parece que viu o Diabo...” “Meu problema é não conseguir vê-lo...”



Preparou o sanduíche devagar, vez em quando a faca suspensa, procurando ouvir o que houvesse lá fora, e comeu à janela, olhar fixo na mesa, não podia abandonar a guarda. Irritou-se quando moleques começaram a brincar no terreno baldio, entre ele e o objeto de seu interesse. Profanação. Expulsou-os com palavrões, um deles ameaçou-o com um pedaço de tijolo, grunhindo. E começava a anoitecer. O céu de um fim de dia de chuva, laranjas e rosas, um indefinível roxo, e as sombras lentas, o denso das mangueiras, barulheira de “passos pretos” e chupins, a Ave Maria no rádio de Dona Hermínia. 

Talvez olhar tanto, tão fixo, o tivesse feito passar por um cochilo. Porque houve um momento em que abriu os olhos, sobressaltado, e a sombra passou lá nos fundos, com certeza contornando a casa pelo outro lado, o que não podia ver. Agora. Foi para a rua, para ter a perspectiva certa, a amplidão sob controle. Não viu. Agastado, decidiu entrar na casa. Por que não? Era noite já, quem o olharia? Empurrou o portão, um gradil podre, e entrou na varanda. Sujeiras de cachorro, um resto de pneu, papéis de bala, uma lata de cerveja, uma espiral de arame enferrujado. “Fique calmo.” O escuro cada vez maior, mais protetor, mais insidioso também. “Mato você, se aparecer. Aparece, seu bosta!”- tremia, cerrava os dentes. Contornou a casa pelo lado em que supunha que ele não estaria, foi para os fundos, onde encontrou a goiabeira, a tiririca alta, pedras, lixo, nada. No entanto, ouviu os passos. E ouviu-os como que correndo: pulara o muro, estava na rua, fugia. Correu também.

De onde lhe vinha essa coragem? Porque – incrível – era agora um perseguidor. Lá adiante, os passos largos, a sombra contornava uma esquina, e era preciso não perdê-la de vista. Agora, uma rua central, não de todo deserta, mas o outro se esgueirava entre gente na calçada, um grupinho ruidoso em frente a uma lanchonete, sem desaparecer. Outro era o ritmo, ambos apenas andavam, vigiavam-se, mediam-se, ele via a cabeça que se virava para certificar-se de que continuava havendo perseguição. “Vou te pegar, miserável”, inchava: não era também capaz de causar medo? Mais alguns quarteirões, uma descida, e então uma rua comprida em que as casas começavam a escassear, passagem por depósitos de material de construção, uma madeireira, largos intervalos de terrenos a ocupar, mais sinuosidades, um desaparecer e reaparecer lá na frente, a sombra bailarina, ele o sabujo determinado, implacável. Parou, precisou parar, para avaliar o terreno. Estava perto do brejo. Não havia lua. A cidade ficara longe e era possível ver muito pouco. Um paredão de eucaliptos. Tão bom o cheiro, misturado a alguma coisa que queimava na noite. Lá, entre as frestas dos troncos, ele não acabara de passar? Cães ladravam – eram dezenas – em chácaras das proximidades.

Começava a sentir-se muito cansado, a andar com dor. Estava perplexo por ter chegado tão longe, e tudo isso não fazia sentido, não havia homem algum, não via nada, estava exposto, para onde olhar, de que lado poderia ser atacado? O ermo. Lá embaixo a luz da cidade criava uma zona difusa de claridade baça no limiar do céu negro. Mugidos. Uma ave branca abriu as asas e pousou além, num tronco seco, piando áspero. Para onde ir? Resolveu esperar. Imóvel, só muito mais tarde sentiu que um movimento no escuro era feito em sua direção.

- Você está aí? Você está aí? – gritou, e apalpou o bolso, na inútil esperança de haver trazido o canivete. Pedras, abaixou-se para pegar uma. A sombra se movia em absoluto silêncio, o homem alto. Passou a mão devagar, alisando o cabelo. Um sinal de nervosismo, pensou, um tique, é um louco, um obcecado. “Fala comigo, porra! Que você quer de mim, que você fazia lá na casa?” Nenhum som. Estava ali, não avançava, olhava-o - um olhar vinha daquilo, como era? “Fala, desgraçado! Que foi que eu te fiz?”

Imperceptivelmente, era ele quem andava, quem ameaçava, quem iria tocá-lo, quem estava muito perto. A sombra não se mexia. Nervoso, lembrou-se: o isqueiro. No bolso da camisa. 

Aproximou-se. Agora, sentia a respiração do outro e poderia, se quisesse, dar-lhe um pontapé na braguilha, desmontá-lo. “Você está com medo, hem? Confessa: você está com medo. Porque eu vou saber”, disse, trêmulo, acendendo o isqueiro e queimando os dedos para sustentar a chama alta. Então, o rosto do homem.

E veio o grito. E não teve mais fim

quarta-feira, 29 de julho de 2015

BELMIRO AGONIZA: O FILHO E O PAI EM CONTO DO LIVRO "DOBRAS DA NOITE"




BELMIRO AGONIZA

(Para Rosângela Vieira Rocha, em Brasília)


       Vieira Rocha, em Brasília)





                 Ele não queria dormir: dormisse, sonharia com os carregamentos a fazer e com aquela prestação de contas que teria com o patrão na qual faltava alguma coisa, número crucial, pelo que seria repreendido, talvez demitido. “Mas, calma, bem, não é assim, não há de ser nada!”, ela implorava, procurando não chorar, segurando-lhe a mão; estava achando-a fria, era óbvio que se assustava, mas continuava – “Olha, o remédio vai fazer efeito, esses pensamentos, essa bagunceira na tua cabeça, tudo vai passar..."
                 Ele olhava para a dupla como se estivesse de fora, de muito longe. Raro o pai lhe pedia alguma coisa, ajuda ou conversa: ou era a sua mãe ou preferia que fosse chamado outro filho, o mais velho, o primogênito, que morava no quarteirão de cima. Ele se casara recentemente e se aborrecia por ter que sair de casa e ver um doente, mas vinha. A portas fechadas, conversavam, a mãe sentada ali, rezando; braços cruzados, cabisbaixo, sentia-se perfeitamente inútil e queria que isso acabasse logo. “O Celso demora muito; o que a senhora acha que esses dois conversam?”; “Xiu...Não sei. E a gente não tem que saber, viu?”
               O mais velho tendo se retirado, recomeçavam as queixas: o teto ia desabar porque vigas e ripas estavam podres; o relógio do corredor fazia barulho demais e, no entanto, era preciso que a todo momento lhe dissessem as horas, que lhe repetissem qual dia era na folhinha – não acreditava na resposta e precisava a folhinha na mão, conferi-la, bom, eis o mês, é este mesmo, o dia, uma quinta-feira, o número, o número...Pelos seus cálculos, pelo que o doutor dissera, mais um mês, estaria curado. Curad sim, mas, porra, porque tanta gente batendo prego ali perto, ali fora, aquele sem-fim de martelos batendo, fincando? “Não tem nada, bem, é cisma sua, só cisma!”; “Eu escuto, eu escuto muito bem, meu ouvido é muito bom, viu? muito bom! É prego que não acaba mais, prego, prego...” Quando não era isso, havia uma boiada passando pelo quarto, a noite inteira o tropel, as patas, “...muito, muito boi, Nena...Eu já não agüento ver tanto boi!”. E a sede. E o fazer nas calças, que era quando mais chorava, de vergonha, porque ela o limpava, cuidadosa, estóica, conseguindo o milagre de não deixar o rosto acusar o impacto do fedor. Ele não se aproximava nesses momentos, porque os gemidos do pai lá dentro o assustavam, mas teve a curiosidade de olhar uma vez e viu o pijama arriado, as pernas magras, muito brancas, com as veias azuis nítidas, e a mãe viu-o à porta, fazendo sinais desesperados para que se afastasse. Cuidava do seu homem- do que fora seu homem – e isso era lá entre eles.


            
                Não era assim havia pouco mais de meio ano, quando o caminhão estacionava e não era possível ignorar que ele chegava – anunciava-se com buzina de irritar o quarteirão todo, entrava à sua maneira estridente, alegre, pisando com a segurança de quem retornasse a um reino só seu, depois de meses passados em estradas e fazendas. Chegando aos 60 anos, ainda assim vinha com aquele vigor absurdo e ele, dormindo, irritava-se, praguejava, a madrugada rompida por aquele estardalhaço, aquele bater violento no portão, os sapatões rangendo, um grito lá na varanda porque a mãe já se atirara em seus braços e os dois matavam saudades. Demoravam a dar-se conta de sua presença contrariada: lavava o rosto, escovava os dentes e preparava-se para a mesa do café porque o dia, então, começaria mais cedo, já que eles ficavam conversando, as luzes acesas, ouvindo os discos de sucessos italianos, até tomarem senso. Não o ignorava, mas era muito tempo depois de chegar que lhe dava um safanão e lhe passava a mão grossa na testa, dizia um “E aí, moção? Cuidando bem da minha Nena?”, e ele respondia com um sorriso embaraçado. O aumentativo não fazia sentido, mesmo lhe parecia mofa – mais menino, franzino para seus dezessete anos, estava longe dos modelos que ele admirava. Deixava-os entretendo-se com conversas e com Nico Fidenco no “granello di sabia” porque o dia estaria perdido, em casa – restava-lhe sair e buscar alguma cara conhecida pela cidade. Vantagem seria, no almoço, comer alguma das receitas inesperadas que a sua mãe faria. 
                 Ele, monstro de sadio, de modo algum prenunciava essa figura agora inválida no quarto – onde o bichinho tenaz, vingativo, naquele quase metro e oitenta de morenice clara, poucos cabelos brancos, poucas rugas, os dentes ainda todos seus, braços e pernas rijos de mato, carga, luta,  movimento, volante?  Quando ausente, a mãe passava horas ouvindo aqueles discos e indo seguidamente à janela, sabendo ser inútil, porque ele apareceria apenas quando tivesse que aparecer; punha-se então a trabalhar com mais empenho com as freguesas de cabelo e manicure, recebendo-as ali ou indo às casas, deixando-o só com os deveres do último ano de ginásio. 
                    Secretamente, ele tinha o mapa – dispunha-o na mesa e examinava os pontos, traçando outros, os que supunha poderem acompanhá-lo com exatidão nos trajetos que fazia longe deles, com o caminhão onde estava escrito “Xodó da Frota”: aqui Presidente Prudente, acolá Mato Grosso, a fazenda Barreirão; uma estrada que talvez fosse a que usasse naquele momento; ele atravessa pontes, pára em algum posto rodoviário, conversa com guardas, desce para urinar com aquelas pisadas fortes, os sapatões imundos; há mato e mais mato, verdes que nunca acabam, o cansaço das muitas árvores sem sinal de gente, dos cerrados sob o sol; o pai na ponta de seus dedos, ela marca com lápis de cores diferentes esses lugares onde ele esteve, está ou estará na certa; ouve as conversas, sabe de tudo sobre seu trabalho, embora se creia, na casa, que ninguém é mais alheio. Guardava o mapa traçado em folha de caderno com papel de seda só quando exausto de especular, desenhar, redesenhar rotas, rodovias, escrevendo os nomes das fazendas e acidentes geográficos com letras cuidadosas, de imprensa.


                  Praguejava e chutava o calçamento, indo para o centro, porque se incomodava com não saber em que mundo se movia agora, crepúsculos truncados, olhares que o mediam, que pareciam entre penalizados e ávidos por saber mais notícias ruins, o cheiro do médico com sua maleta, gente que aparecia às janelas abertas com uma xeretice impenitente, enxotada por Dona Nena, mas reincidindo sempre, perguntas e comentários que eram como pêsames antecipados com os quais não sabia como lidar. Os amigos pouco estavam interessados nele, porque em geral ficava afastado dos esportes, medroso de expor as pernas, de ser ridicularizado pelo corpo de que não podia se orgulhar – sobretudo, nada de urinar perto de tanta argúcia para fraquezas e inferioridades e tanta crueldade nas zombarias. Sonhava ter quem lhe explicasse o que havia, que espécie de tormento era aquele, o que estava para perder; precisaria ser um adulto, um desses amigos que os personagens de alguns dos livros e gibis encontravam, mais velhos, bem maduros, tutelares, compreensivos, capazes de uma indulgência clarividente, sempre as palavras mais certeiras.
          Não havia ninguém assim. Mas havia o bar do Vasco, numa das ruas principais. Estava aprendendo a fumar, a engolir algumas daquelas misturas ardentes, que lhe davam dores de cabeça tremendas e uma sede que nem cachoeiras saciariam, na madrugada; sabia fazer olhares duros, manter uma cara de sarcasmo e desafio diante dos freqüentadores mais assíduos, não se rebaixaria, não se acanharia diante daqueles olhares que tinham no máximo  uma complacência divertida com sua inexperiência mascarada de orgulho.
       Lá estava ela, Lili Caburé, a mulher que ia quase toda noite comprar cigarros, afrontando os tipos, que se punham, alguns, de pé, entre reverentes e alarmados, ou paravam o bilhar para conferir até onde iria o atrevimento; Vasco, cego de um olho, sempre mascando fumo, divertia-se com a presença e lhe entregava o maço com a mão enorme lerda, meio negaceando, meio querendo fazê-la sentir o que podia significar isso de adentrar reduto de homem, sabe com o que está mexendo, moça?  Quanto a ele, vinha costurando, em tremores, uma espécie de projeto de coragem, e agora era questão de segui-la, ignorando assovios surdos e cochichos, quando saía rapidamente para um dos quarteirões laterais. Ela dera sinais de que seria receptiva ao que ele quisesse, e queria o quê? Sabia, mas não podia aspirar a tanto. Só podia segui-la, ouvindo os saltos finos repicando no calçamento, a bolsa balançando em seu braço, vez em quando um relance de olhar para trás para conferir se ele estava mesmo seguindo-a, se não se perdia do caminho que ela lhe ia delineando. Meteu-se por uma rua mais pobre, passou por portões, cães e girou uma chave numa casa de fundos.
       Que era isso? Um vestíbulo, e havia música, um toca-discos, uma luz coberta com papel de seda azul e, num canto, como que desmantelado num sofá, um sujeito magro e alto, de cabelos bem curtos, pálido, fazendo um bico com os lábios, examinando-o, trocando com ela um olhar de entendimento. Suado, um pouco de preto escorria de suas sobrancelhas, as bordas dos olhos de um castanho molhado também se sujavam e ele esfregava o incômodo com as costas da mão esquerda, amuando. “Filho do Bel, é?”, foi tudo que disse, enfadado, tirando um palito de fósforo da caixa e acendendo um cigarro com um vagar preciosista. A seguir, ajustou a sua voz à da cantora do disco, de modo a parecer a mais afinada e precisa das imitações, e lançou a cabeça para trás, andando pela saleta como um manequim lânguido e agonizante, num estupor afetado.  Não era possível saber quem estava cantando o “chegou a hora/chegou, chegou/meu corpo treme e ginga qual pandeiro...” Parecia uma exibição preparada para ele, a mulher ria baixinho e aplaudia o cantor, mas, sem conseguir a sua adesão, parou.  Depois, fez sinal para que ele entrasse num quarto. A primeira coisa que fez foi pedir que olhasse para o retrato de um homem jovem, emoldurado sobre um criado-mudo. Seu pai próximo aos trinta anos. “Fui namorada dele, não sabia? Naquela época, bem, era Liliana de Souza, nada de Lili...”
     Não encontrava o que dizer, lançando olhares para o retrato e para a mulher, tentando achar nela uma semelhança tranqüilizadora com a mãe, mas não havia: era morena, enxuta, mais conservada, talvez abaixo dos cinqüenta, um olhar duro, a boca muito pintada. Sentada na cama, quis que se sentasse ao seu lado e acendeu um cigarro, “...não fica envergonhado, eu conheci bem o teu pai, meu querido...” E o inevitável: “Me diz como ele está. Que raio de doença é essa? Sempre foi tão forte...” Ele continuava sem poder falar, trêmulo, e o quarto, o perfume dela, a luz, a voz do cantor, ou do disco?, chegando da sala contígua, oprimiam-no. De modo que se dirigiu para a janela, abriu-a, olhou para fora, para outras casas, para a cidade, e dali, sentindo-se no seguro, no parapeito, virou-se para olhar direto para ela. Mas não tinha resposta, não se sentia capaz de descrever logicamente o surgimento e o desenvolvimento da doença. De modo que preferiu ouvi-la, o pouco que disse, uma espécie de monólogo sobre seu pai, sobre as muitas noites passadas com ele, mesmo depois do casamento, sobre certas promessas – uma de construir casa para ela em cidade próxima – que não tinham sido cumpridas, mas ela não se importava – ah, não, por alguém como o Bel, qualquer sacrifício valia! era um canalha, mas, que charme! nunca houvera nada parecido, e “veja, querido, eu conheço homem, eu conheço o mundo...”.
     Ela se constrangia ouvindo-a, parecendo que a servia como ouvinte como outro homem a serviria para a cama; a passividade o esgotava, além de enchê-lo de raiva do maravilhoso ausente, do verdadeiro e único motivo da conversa. Em dado momento, simplesmente deu-lhe as costas, voltou a interessar-se pela vista da cidade, o que não estancou o desabafo dela. Depois, talvez cansada de falar sozinha, ela abriu a cortina de fitas de plástico coloridas, que valiam como porta entre quarto e sala, para que o cantor entrasse e confirmasse o que ela dizia, ao que ele concordava, lançando olhares para ele, para o filho, olhares que faziam comparações, que se detinham em pontos seus que o deixavam ruborizado, que recordavam, avaliavam, motivavam sorrisos – os dois se compreendiam em tudo. “Também era terrível, não era, Souza?” “Oh, se era, Lili! E gozado: o mocinho aí não se parece muito com ele...” “Mais tarde, vai parecer. Olha o jeito do nariz, um pouco da boca. Eu acho que vai...” O tipo mantinha um hesitante, não querendo parecer indelicado e manifestar sua incredulidade. Não iria dizer que ele não podia nem vagamente aspirar a se assemelhar ao assombroso Bel. Depois, ela foi para os fundos, e, ao voltar, trazia na mão um embrulho, que lhe estendeu.
   - Isso era dele...Pode ficar pra você, acho que deve ficar. 
   - Não. Eu entrego para ele...
   - E tua mãe deixaria? Melhor você esconder bem.
    Levou-o à porta, sempre seguida pelo cantor, que fazia gestos semelhantes aos seus, erguia a cabeça quando ela a erguia para uma afirmação, fumava como ela, soltando a fumaça assim que ela a soltava, além de se manter como uma parte dela (ah, era caso de compartilhar tudo!) logo atrás, mesma pele, mesma alma. “Manda lembranças pro Bel...”, ele ouviu, achando que tinha ouvido os dois.
    Não olhou para trás quando saiu, mas ouviu os cicios e, passado um portão, abriu o papel manilha rosa do embrulho: era um facão. 


     Para consolar a mãe, ele punha a mão no seu ombro, e ela lhe molhava a palma com os beijos excessivos, balbuciando “Miro, Miro, Miro”, desesperada com as evidências sempre piores da evolução da doença do pai. Ele se irritava por ela não tirar o nome dele da boca, afastava a mão com jeito. O pai estava magro demais, ossos atritando-se no pijama, e fazia à noite ruídos como que involuntários, saídos de um peito que lutava pelo ar, se engalfinhava com patas invisíveis, de uma força aniquiladora crescente; gritava seu nome, e ela acordava já certa de que era o fim, de que era preciso suprimir aqueles sons com sacudidelas, com rogos, com ternuras perfeitamente ineptas até que cessassem por si só. Fosse o que fosse, aquilo – tarântula de mil perninhas a deslizar pelo breu viscoso e lento – o devastava com uma fúria alegre e indiferente a gemidos, com leis e caprichos ininteligíveis para uma humanidade que já não era possível reconhecer, esvaída sob a ação de sombras meticulosamente aplicadas em destruir e triunfantes no nascedouro. A mãe tinha que poder, mas não podia, não podia mais, e numa tarde abraçou-se a ele, praticamente gritando: “Me pediu para se olhar no espelho. Mas eu não vou fazer isso, não vou deixar!”
     Celso se recusava a vir vê-lo – mal pisava no quarto, a sua expressão traía horror ao que estava vendo, ao cheiro que era impossível atenuar, e queria tudo da vida – a mulher bonita, jovem, um filho a se desenhar – menos sentir tanta repulsa e culpar-se por senti-la. Ouvia o pai e saía sem palavra, ganhando o portão, montando de volta na bicicleta, aliviado pelo ar da rua, até que de novo sua presença fosse exigida e ele, terrivelmente incomodado, mas moralmente obrigado a vir, voltaria, desejando que isso acabasse vez por todas e que só lhe restasse cuidar das únicas coisas que o interessavam.
     Ele pedia coisas que não podiam ser atendidas: que lhe aparecesse uma irmã havia anos alheia, moradora em Andradina, para que conversassem, resolvessem pendências obscuras que agora tornavam-se urgentes, que ele podia enfim esclarecer; que fosse removido aquele maldito telhado que ia desabar logo, logo – ele via, as vigas se soltavam, as telhas estavam quebradas, convinha chamar pedreiro o mais rápido que pudessem; ainda em algum canto do quintal, não havia um filho da puta martelando, não o deixando dormir? por que não mandavam esse homem embora? – os bois continuavam a passar, centenas, e o barulho que aquilo fazia...Onde estavam Belo, Ramos, Vidigal? – os parceiros de viagens de caminhão sim apareceram – e Belo, risonho em qualquer circunstância, dissera que em breve estariam de volta às cachaças e ao torresmo pururuca no bar do Hermes, fazendo-o rir – se aquilo era uma risada – também. Mas fora uma visita só, e agora era só ela na vigia para que tudo que ele pedisse fosse atendido prontamente, um rosário nas mãos, descuidada da aparência, vez que outra assistida também por uma prima, uma vizinha. Ele para quase nada valia, nunca o pai pedia que entrasse no quarto, nem mesmo para narrar uma de suas alucinações cobrando testemunho para o que via. Quando gritava, quando suas falas eram impossíveis de ignorar, esperava surpreender entre as doideiras engroladas o nome de Lili, Liliana, mas este nunca saía (embora o cabo do facão tivesse as iniciais de ambos, talvez ela estivesse muito mais esquecida do que supunha).  Tarde da noite, oprimido pelos ruídos daquele peito e por aqueles gritos, em que parecia perseguido por hordas que lhe cobiçassem a alma, ele ia para a rua, exausto. Devia haver algum bar aberto, na madrugada.
    Entrava, agora, pelos fundos da casa, abrindo-a pela porta da cozinha, esquivando-se ao ponto do corredor onde a mãe ficava, num sofá velho, em vigília mais propensa ao sobressalto que à atenção, tombando num sono que a vencia fugazmente. Ela não estava lá e ele queria, queria poder ficar livremente no quarto, olhando para o adormecido. Furtivo, pisou no território para o qual o pai nunca o convidava. A respiração entrecortada, ele se agitava, produzindo como que um murmúrio de um animal que nem a pancadas fosse apaziguado, os lençóis úmidos, manchados por coisas cuja procedência ele se recusava a imaginar. Só o relógio do corredor fazia algum ruído, e ele pensou na providência de levá-lo para a despensa nos fundos, mas, aos pés da cama, não tinha vontade alguma de se mover – era só uma espera.
     Esperava o quê? Súbito, o pai se contorceu energicamente, esticou os braços, soltou um erro e os olhos ficaram abertos, extraordinariamente abertos. Apavorado, ainda achou forças para aproximar-se, para tocar-lhe na clavícula esquerda exposta por um rasgo na camisa do pijama, para sacudi-lo: “Pai, pai, pai!”, bradou. “Fala comigo, fala!”, sacudiu-o mais, como se pudesse, pela força, arrancá-lo das funduras de que aqueles olhos arregalados eram testemunha. “Fala comigo, fala!”
    O pai não falava, mas via. Via o quê? Algo que só se encontrava ao alcance do poder daqueles olhos. Não adiantava ele pedir, rogar, querer. Desde sempre invisível, agora o era ainda mais. 
   Olhou-o, olhou-o por muito tempo, até que compreendeu que tinha que forçar aquelas pálpebras para baixo, velar o estupor. Teria o resto da vida para lembrá-lo, sem nunca chegar a entender.

terça-feira, 28 de julho de 2015

A GAVETA: CONTO DO LIVRO "NÓ DE SOMBRAS"






                                          A GAVETA



- Estou apaixonada.

Pensou alto. Olhou ao redor para se alguém a ouvira falando sozinha, mas o bar estava quase vazio. Tranqüilizou-se. “Estou apaixonada”, continuou, mas agora só em pensamento e repetiu a afirmação para si vezes sem conta, como uma oração, um pouco como se ela ainda não tivesse a convicção devida e precisasse ser reforçada para que fossem eliminadas as suas margens de perplexidade. 
"Estou apaixonada”, e bebia um café vagarosamente. De repente, o pequeno ato lhe pareceu solene, as coisas precisando ser fruídas com cuidado, com adoração. Pensou que a palavra “esmero” resumia a maneira com que segurava a xícara e bebia. Era delicioso e era exasperador, havia naquilo algo intensamente bom, mas quebradiço. Tremia. Sofria dos nervos, não saía sem calmante na bolsa. Fosse como fosse, estava viva e era bom estar viva, mas, meu Deus, poderia ser menos delicado, menos solene. “Tenho medo”.
Ele já era mais para maduro, tinha um começo de calvície, mas os poucos cabelos pareciam tão macios, tão leves, tão suavemente pretos! O melhor, porém, era o segredo: não contara a ninguém, nem mesma a Anita, o que estava sentindo, quem era o que sentia. O segredo completo lhe dava uma sensação de superioridade mística, de exclusividade transcendente, “sou uma sacerdotisa, guardo o deus que ninguém viu.” 
Olhou para as mãos – era preciso que estivessem limpas, limpíssimas, tinha hora na manicure e usaria aquele esmalte rosa muito peculiar que vira nas unhas de uma freguesa outro dia. Impecável, era preciso estar impecável. Gostava do adjetivo: sintetizava com perfeição a claridade do dia de abril, a limpeza das ruas, as flores  da chuva de ouro no calçamento, o vento discreto, as conversas e risadas dos corretores ociosos na esquina da praça, o cheiro de carne com batatas em alguma panela nos fundos do bar, um assovio, vago ruído de torneira mal fechada, pardais, lembranças de um trecho de concerto para piano e orquestra de Schumann, vida, vida, e Ele.

Tinha os olhos bem pretos, mas luminosos – sim, há escuridões radiantes, as minas, os poços, buracos sem fundo em cujas paredes luzem obscuras pedras preciosas. A boca opulenta, oferecida, quase obscena pela grossura dos lábios, mas nobre. Um bigode preto, preto, pretume denso de alguma relva ônix num vale de maciez sobrenatural, algo do luxo, do conforto de um assento particularmente negro de coche mortuário. O bigode. Orelhas pequenas, nariz um pouco rapace, queixo bem rijo. O mesmo preto de sonho nos pêlos do peito.
Subitamente, teve uma palpitação muito forte, persignou-se, tinha medo dessa intensidade de amor. “Estou completamente perdida”. Era querer mais que a vida, era compactuar com alguma estranha legião de idólatras que descessem ao esgoto em busca de excrementos de ouro. E sabe-se quais infernos foram reservados para os idólatras.
Saiu rapidamente do bar. E, na rua, de novo ficou feliz. Pensou no jogo de buraco marcado para a noite na casa de Anita, na biblioteca a reabrir na segunda-feira, no dever de ir à missa das oito com a mãe. E pensou em homens inúmeros, vagos, erráticos: o garoto insinuante, vulgar, da floricultura, que estaria fazendo agora seus 17, 18 anos; o gerente do cine Esmeralda (era sabido que carregava mulheres para o escritório dos fundos); o açougueiro Nelson, com o boné puxado sobre o olho, cravando olhares carniceiros sobre mulher qualquer que lhe pisasse no estabelecimento; o frentista do posto, o bancário, o corretor palitando os dentes, o gesto de um, o sorriso de outro, ancas, pernas, shorts, pêlos, risadas, braguilhas contra as quais os olhos não podiam lutar. 
Anita lhe dizia: “Eu passo mal, você sabe. A gente só adivinhando, só querendo... Não te contei ainda?” – e vinha a história da mulher do proprietário do hotel Star, que não perdia viajante bonito, surpreendida com o vendedor de enxovais pelo marido, ajoelhada. “E o sujeito se levantou pelado e alegou que não tinha nada a ver com aquilo. Pode haver coisa mais indecente, querida?” – Anita quase gritava, rindo. Adorava enumerar os mais pavorosos detalhes, obrigava-a a tapar os ouvidos, a correr para outro aposento.
Horríveis, todos os homens. Mas, não, não havia ninguém como Ele. Com Ele, nenhuma dessas atrocidades: haveria dor, pois era um macho, mas o êxtase compensaria. Ninguém saberia. Ninguém, exceto ela, o conhecia. E tremia porque seria hoje à noite.


A missa acabada, telefonou para Anita dizendo que não iria ao buraco, “estou indisposta, cansada, uma dor de cabeça... vou tomar um analgésico, ler um pouco, depois dormir...” “Você só me dá canseira, hem? Não te convido mais.” Dona Palmira via um programa humorístico na televisão. Seu Olavo, o vizinho de parede-meia, ouvia alto uma transmissão de futebol. 
Muito barulho para seu gosto. Era questão de ter paciência. Com o silêncio de lá pelas onze, onze e meia, Ele viria. Foi arrumar alguma coisa na cozinha. Ouviu um pio de pássaro desconhecido, começou a balbuciar uma Ave Maria. Tão nervosa, deixou espatifar-se um prato; a mãe acorreu para reclamar e ajudá-la a recolher os cacos, achou-a pálida, esquisita. “Não é nada não”, garantiu, mas estranhou a própria voz: era e não era a sua. Parecia-lhe deformada, involuntária, a voz de uma Beatriz maligna, independente, nem um pouco humilde, nem um pouco respeitosa, nada do que se pensava a seu respeito e era forçado por seu comportamento previsível. A “boa moça” nada podia contra aquela força que parecia misturar desprezo, zombaria e uma avaliação implacável, obscena, de si mesma. Precisou ir olhar-se no espelho para verificar se o rosto não estaria um pouco retorcido. Nada. Graças a Deus, era ela ainda. Linha por linha.
E então? Cessaram os ruídos. Agora ouvia apenas a tosse da mãe, uns vagos automóveis passando longe, um vento algo mais pronunciado na espirradeira junto à janela do seu quarto. Abriu-a. Acendeu um cigarro, dos que fumava escondida da mãe. Havia um cão magro lamentando do lado de fora do portão. Alguma ave noturna ruflou rápido por sobre a casa. Estava impaciente. Ia da janela para o interior do quarto e daí voltava para a janela. Não teria sido melhor se houvesse cancelado o encontro? Mas, não demorou para que a sombra familiar, densa, apontasse na esquina, como de hábito. Mantivera-se lá, íntima e desconhecida, até a noite de hoje, para a qual fora marcada a aproximação. Ele fez um sinal, ela assentiu. Desceu correndo para o portão. Correu para a silhueta de cigarro na boca.


Enquanto a mãe chorava incontrolavelmente na sala, mas ainda achando voz para explicar, contar feitos e virtudes da filha, oferecer café, perguntar de doentes e ausentes, Anita andava pelo quarto. Dona Palmira em nada tocara, supersticiosa. Anita via a janela aberta, o criado-mudo, o abajur, o guarda-roupas, tudo perfeitamente em ordem. A morta estava impressionante: cabelo arrumado, cara branca, branca, um jeito de querer sorrir na boca, o vestido azul turquesa (Anita sabia que era o seu favorito, o “de ver Deus”, como ela brincava), batom, unhas feitas, um esmalte que nunca a vira usar. “Estava indisposta, com dor de cabeça”, ela ouvia dona Palmira dizer no corredor, “...e não se queixou comigo, Anita que me disse. Quebrou um prato. Coitada, a aparência não era boa”, e de novo os soluços, os gritos. “Era cardíaca, sempre suspeitei que fosse cardíaca. Mas o Dr. Calixto dizia que era só nervosismo.”


Anita olhava para a cama. E sempre atentando para cada pormenor do quarto, sentia que tudo ali era incomodamente correto, limpo, organizado; pensou que havia naquilo um asseio exagerado, mas, bem, Beatriz sempre fora um tanto maníaca em questões de limpeza e ordem. Maçante às vezes, por que não pensá-lo, embora estivesse morta? Arrependeu-se do pensamento, imaginando que ela o ouviria. Foi à janela e olhou para rua, para a esquina. 
Não era estranho que quisesse ficar ali, que o quarto a atraísse como um santuário obscuro? Poucas vezes entrara nele, Beatriz era ciumenta de sua privacidade, mesmo com ela, a melhor amiga.
Subitamente, interessou-se pela penteadeira com uma curiosidade incomum. Aproximou-se do móvel. Era perturbador pensar que haveria um olhar, ainda que fosse o olhar de uma morta, às suas costas, para censurar essa indiscrição compulsiva: abrir a primeira gaveta. E Dona Palmira, não poderia entrar a qualquer momento? Não: chorava e tagarelava na sala.
A gaveta não continha nada exceto uma fotografia, e bem grande. Não, não era uma fotografia, mas um recorte de revista. Mostrava um homem extremamente sedutor, um quarentão, camisa entreaberta no peito, um cigarro nos dedos, encostado a um poste de uma esquina manifestamente falsa, um cenário. 
Era uma propaganda de colônia masculina. A imagem era de um realismo quase ideal, de um preto e branco que oferecia tudo, a precisão técnica podendo ser classificada como impecável. Impecável, caiu nas mãos de Anita, o recorte feito com o capricho típico de Beatriz. “Que homem!”, Anita suspirou, apalpando o peito, e fitou o rosto no recorte longamente. Teve a impressão de que seu olhar era correspondido com ardor, com familiaridade, pelo do fotografado.
Dobrou o recorte cuidadosamente e enfiou-o na bolsa, olhando para a morta como a pedir-lhe desculpas. Deixou o quarto. Tinha uma expressão perfeitamente digna, conveniente, compungida, para falar com Dona Palmira e os presentes, que esperavam lá embaixo a chegada do caixão. Exultava com seu segredo. Saberia ocultá-lo.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

COMENTÁRIO DE LIMA TRINDADE SOBRE O LIVRO "NÓ DE SOMBRAS"












O INTERIOR DE TODOS NÓS
                                                  - Lima Trindade *

Não há uma forte tradição na literatura brasileira em produzir autores de livros de suspense. Alguns bons escritores, como Machado de Assis e Ricardo Ramos, praticaram o gênero ocasionalmente em narrativas curtas. Edgar Allan Poe, nos E.U.A. foi um dos grandes mestres dessa arte. Manter uma narrativa que se baseie na suspensão de um segredo primordial para a história é uma formula comum à prosa policial, de terror e, nos tempos da Guerra Fria, de espionagem. Culminou ainda numa expressão de cunho mais popular recheada de muito sexo e morte, o pulp, de que no Brasil são exemplo aqueles livrinhos vendidos em banca, com capas berrantemente coloridas e papel jornal, espécie de entretenimento descartável. O difícil mesmo é encontrar esse suspense puro, desligado do policial e do terror, e que, ainda assim, exiba rigor formal, apuro de linguagem e alguma criatividade. Pois é esse o caso de Nó de Sombras (Instituto Moreira Sales, São Paulo, 2000), de Chico Lopes. 

Já no prefácio, Ignácio de Loyola Brandão afirma sua originalidade, incômodo e emoção que a leitura dos dez contos do livro lhe proporcionou. E remete ao cinema como fonte de comparação, talvez pelo fato do autor ser um estudioso da matéria. Fala também de seu caráter de independência por não correr atrás da mídia, mesmo residindo fora dos grandes centros - ele mora em Poços de Caldas - e sabendo da importância desta para se construir uma carreira bem-sucedida, sua oposição à auto-ajuda e à influência opressiva de Rubem Fonseca. Na verdade, o significativo é a literatura de Chico Lopes e está na destreza com que ele utiliza as palavras, na exatidão com que constrói o seu mundo a partir de um cenário de cidade do interior e na investigação que faz da alma humana.

O livro é de uma coesão e unidade impressionantes. Não fosse por uma clara divisão entre os três contos finais, enfeixados de evocações de memórias e passagens da infância para a vida adulta, e os demais, ter-se-ia uma estrutura aproximada de romance.

Todas as histórias se passam no interior. Contudo, esse interior é uma espécie de pano de fundo que projeta uma aguda sensação de desconforto e inadequação para as raias do psicológico, para o nosso interior. Chico Lopes abandona tanto o modelo idílico e naturalista quanto o trágico na relação com a natureza, hipocrisia religiosa, brigas de família, descoberta sexual e coronelismo político, que marcaram nossa literatura regional durante um bom tempo, para se concentrar na análise interior de um mal que padecemos e é universal: nossa incapacidade de amar, nossa solidão, nosso egoísmo e a morbidez na posse do outro. Nada aqui é simples ou simplório, uma forte tensão rege os relacionamentos. Em via de regra, as personagens principais são masculinas - excetuando-se em "Parque dos Cães" e "Na Gaveta", onde o masculino passa a ser o objeto de desejo de duas mulheres - e transitam em pequenas pensões, parques, farmácias, botecos e ruas não muito habitadas. As cidades que retrata, partindo desse ponto de vista, que é o do indivíduo, possuem a mesma complexidade das cidades grandes, metrópoles e megalópoles.

O suspense de suas narrativas é sentido numa linguagem nervosa, num clima de estranheza e violência cercando o cotidiano, em sombras que podem parecer pessoas ou idéias fixas, paixões ou ódios não declarados, porém manifestados em gestos e ações que vão se intensificando até ocasionarem uma ruptura com o mundano e com o falso equilíbrio a ordenar a vida.

O primeiro conto, "Parque dos cães", funciona como uma apresentação ou saudação de "boas-vindas". Um narrador onisciente vai nos anunciando os que seriam as personagens tradicionais a compor o cenário de uma cidadezinha do interior: o louco, o religioso, o comerciante, etc. Enquanto enumera os tipos, lentamente se desdobra de suas palavras um odor de sensualidade e violência contidas, que irromperão contra a mulher que é perseguida por cães vadios na rua. Ela se mudou para lá para ficar perto do ex-amante, agora casado. Enquanto sonha com sua volta, escuta velhas canções de filmes românticos de Hollywood. Esse alheamento da verdadeira natureza da cidade lhe será friamente cobrado. Bem como a Beatriz, em "A gaveta", que sente forte atração pelos homens que conhece, o açougueiro, o frentista do posto, o gerente do cinema, um menino insinuante, o bancário, etc., mas nenhum deles lhe agrada completamente, têm sempre algo de vulgar, de doentio, de sujo. Então, conhece um homem "diferente", um que lhe transmite confiança e faz com que se apaixone. Sua vontade de amar será a causa do seu infortúnio.

Se o nó tem a representação da convergência, ponto de encontro e elo, quando nó de sombras, sendo as sombras o reflexo e projeção de um mal, passará a ser a convergência dos males e problemas a atravessar todo o livro. E o ponto fulcral me parece ser a questão da construção do modelo de masculinidade. O homem, para ser homem, seguindo esse modelo, tem de necessariamente ser forte, bruto, insondável e jamais identificar-se com o que é tido como do universo feminino. Atributos como a delicadeza, sensibilidade e afeto são vistos como fraquezas. O homem foi feito para a ação. E em sua ótica, o sexo se resume ao prazer do corpo, nada mais. As crianças são ensinadas cedo:

"Na banca do Viana, as belezas da Ebal: capas impecavelmente desenhadas, Zorro e Tonto entre rochas, Tarzan atracado com um leão. Era o que havia de melhor: um mundo de heróis másculos, nutridos, movendo-se muito além do seu." (p.132)

É esse modelo instituído que pousa mudo nos contos de Chico Lopes e serve de condutor para os dramas e conflitos. As personagens masculinas fora desse padrão estão sempre se confrontando com outras que, além de serem encarnações vivas dessa masculinidade, demonstram ter uma consciência interior da condição do seu oposto:

"Parecia ciente de alguma coisa sua, profundamente interior, alguma vergonha irremissível de que ele mesmo tinha no máximo uma vaga cogitação." (p. 61)

Em defesa de seu mundo interior e dos velhos códigos de valores ele tentará destruir e dominar aquele que é inadequado. É o que acontece em "Um corpo no rio" e no conto de título malicioso "Nos fundos". Em ambos ocorre, logo no início da narrativa, uma situação em que a nudez das personagens as obrigam a uma comparação de seus genitais, sendo o tamanho o que definirá o aspecto da virilidade do macho. Percebe-se curiosidade e desconforto na constatação da superioridade do outro:

"Primeira vez que pensei em matá-lo? Não me lembro. Talvez naquela tarde, na beira do rio, quando o grupo, liderado por ele, teve que se render à evidência: nus, dele era o maior." (p. 35); e

"Despiu-se ali mesmo. Não tinha roupa de baixo, e sua nudez revelava uma superioridade viril que primeiro deixou-o admirado, depois obrigou-o a uma humilhada avaliação de esguelha." (p. 62).

A partir daí, instaura-se o jogo de dominação com variantes de resultado. Em "Um corpo no rio" o narrador tenta resistir a Nuno, um amigo. Já em "Nos fundos" um homem solitário que havia perdido o pai recentemente tem um estranho como hóspede, um mudo, que aos poucos vai lhe tomando o único bem: sua casa. Se, no primeiro conto, o narrador cometerá assassinato para se livrar da perseguição silenciosa que sofre de Nuno, no segundo haverá uma morte simbólica, o mudo emasculará seu bem-feitor a pedido do próprio. Será a entrega total, a negação da sua força e a legitimação do poder do mudo. João Silvério Trevisan, em seu "Seis balas num buraco só: a crise do masculino" (Editora Record, São Paulo, 1998), discute a questão da castração simbólica e a relação de poder que há no masculino:

"Para o macho, qualquer perda "implica a perda do falo" - seja com dinheiro, em propriedades, no amor, com a mulher, com os filhos, na sua posição profissional, em influência social. Tudo isso repercute no homem como perda de autoridade e, mais grave, uma provável perda da identidade masculina" (p. 51); 

Tanto o narrador de "Um corpo no rio" quanto o solitário de "Nos fundos" são personagens ambíguas, deixando entrever sua atração, desejo ou amor por seus algozes, notando-lhes a beleza ou a falta que fazem.

Se o modelo de masculinidade baseado na força impossibilita uma relação emocional satisfatória entre um homem e uma mulher, entre homens ela parece um combate de forças iguais e contraditórias - o mais fraco contra o mais forte, o "feminino" contra o "masculino" -, uma luta incessante de personalidades, eus, sombras. É o que se depreende de "Do outro lado", onde paira o tema do duplo, um homem obcecado pela visão de uma sombra numa casa abandonada do outro lado da rua. O lado, aqui, ganha conotação não só de lugar palpável, contudo o de um diferente aspecto da personalidade, assim como em "O Médico e o Monstro". Ele é o único que vê a sombra, e sente atração e repulsa. O que vale lembrar nesse conto é que não é a idéia de uma homossexualidade mal resolvida o que o estiola, porém que essa personagem tem o mesmo perfil encontrado nas dos demais contos, possui uma sensibilidade incomum, o mesmo desconforto e inadequação, sendo ela, o feminino e a sombra, o modelo da virilidade.

Onde a homossexualidade surge como tema principal é no belíssimo "O clarão", história de um amor incestuoso entre dois irmãos narrada pelo jovem filho de um deles. Todavia Chico Lopes jamais é óbvio e não alimenta a intenção de explicar nada. Com sutileza ele conta apenas o que o menino vê. Mesmo reproduzindo os binômios forte-fraco/masculino-feminino, os irmãos dormem juntos, saem para caçar e pescar e demonstram felicidade e harmonia na companhia um do outro, chegando a provocar a ira da mãe do menino por ciúmes. O irmão mais jovem tem saúde fraca, aprecia desenhar e se torna dependente financeiramente dos irmãos. O mais velho ostenta um corpo rijo e másculo bigode. A censura social a esta paixão será exercida pela esposa, que tenta manter seu casamento mesmo sendo este infeliz, e faz de tudo para se livrar do rival, o cunhado.

Outra característica interessante de "O clarão" e que está presente também nos dois últimos contos, "A fresta" e "O recado", que tratam de iniciação sexual e voltam a apresentar personagens femininas destruídas por tal modelo de masculinidade, reside na formação de famílias com pais excessivamente rigorosos e geralmente ausentes e mães protetoras e sempre presentes.

"Nó de sombras" nos leva a refletir com muita propriedade sobre um tema difícil e que corre o risco de em mãos menos hábeis descambar em pieguismos, a questão do modelo de masculinidade e a livre expressão do amor e do afeto entre homens e mulheres. Isso tudo mediado pelo prazer e dor que um belo livro de suspense pode proporcionar.


* Lima Trindade é escritor, residente em Salvador, BA. Publicou os romances "Todo o sol mais o Espírito Santo" e "Supermercado da solidão", entre outros livros, e colaborou em várias coletâneas de contos do país. Tem inéditos a lançar.