Por força da circunstância de só
haver um cinema em minha cidade, especializado em block-busters (e ainda por
cima, horror, dublados), fico apenas nos DVDs, confiando em cópias que amigos
me mandam ou, com muita sorte, encontrando alguma coisa digna nas locadoras da
cidade, que são pequenas e restritas ao que o grande público quer consumir:
ação violenta, terror vagabundo, romances idiotas, na maior parte do tempo.
Dizer que isso é decadência do cinema comercial é um pouco besta. O cinema
sempre foi uma arte industrial, com pouca coisa realmente artística pelo meio
de aluviões de lixo. A gente sempre sai por aí em caça de filmes predestinado
inevitavelmente a riscos. As apostas no escuro são constantes, as decepções
abundantes, mas os milagres de beleza e arte, escassos, são ainda assim
compensadores.
Eu conhecia “Inverno de sangue em
Veneza” (“Don´t look now”) de fama, filme de terror tido como especial,
verdadeiramente “cult”, de 1973, dirigido pelo inglês Nicolas Roeg. Vi o DVD
todo, filme e extras. É um lançamento bem cuidado da Versátil e pode ter
certeza de que você não verá este filme com facilidade nas programações, nem
mesmo as de tevê a cabo. Parece que os programadores o acham “datado” ou ainda
não o conhecem, ou não gostam do gênero.
A minha sorte foi ter um amigo muito atencioso, Marcelo Adifa, poeta de
Sorocaba, que disse que ia me conseguir uma cópia e a mandou, e ela felizmente
me chegou, mesmo com mil problemas advindos de encomenda pela internet e
demoras irritantes no correio.
É um filme de terror? Duvidoso.
Se conceituarmos o terror nos parâmetros do que anda fazendo sucesso nos cinemas
e locadoras, “Inverno de sangue em Veneza” é um filme de poucos sustos, embora
seja de um tremendo poder de sugestão para espectadores mais sensíveis. Não sai
nenhum monstro melequento do armário, nenhum demônio aparece com olhos
fosforecentes no escuro, não há adolescentes cretinos se metendo em cabanas e
abrindo livros ocultistas proibidos nem bonecas assassinas etc. É a história de
um casal cujo descompasso maior está entre a sensibilidade (um tanto crédula)
da mulher e o racionalismo seco (e estúpido) do marido. Eles são Julie Christie
e Donald Sutherland e sem dúvida aquele figurino, os penteados e outros
detalhes dão um look infalível de anos 70 à produção. Mas se alguém for fútil o
suficiente para achar isso ruim, nem precisa continuar lendo o que escrevo
aqui.
Ele é um arquiteto, ela uma dona
de casa, e eles têm um casal de filhos. No início, a menina, passeando no campo
junto a casa onde moram, deixa por acidente cair num laguinho a bola com que
brincava. E morre afogada. Esse início do filme é com justiça celebrado pela
habilidade com que Roeg joga todos os elementos da trama e da narrativa em
poucos minutos, na nossa cara. É, na verdade, um exercício impecável de
premonição e angústia. Porque o racionalista obstinado que é Sutherland, na
verdade, é obtuso o bastante, durão o bastante para não perceber que é dotado
de poderes paranormais, e esta é sua tragédia. Ele percebeu que algo acontecia
e tentou salvar a filha. O grito de desespero que solta dentro da água, com a
menina (em sua capa vermelha de chuva) no colo, é mais terrível que qualquer
susto desses que se vê por aí. Sutherland é um grande ator (infelizmente, não
sempre). Depois, tudo se desloca (em corte rápido e brilhante) para Veneza,
onde Sutherland vai restaurar uma igreja corroída para um bispo (o ator Massimo
Girotti). E, num restaurante, sua mulher é olhada com insistência por duas
inglesas, irmãs envelhecidas, que fazem turismo na cidade. Uma delas é médium,
acaba se aproximando de Christie e diz que viu uma garota de capa vermelha ao
lado dela, dizendo (aquela conversa de “tudo bem do lado de lá” em que só
acreditam os que desejam desesperadamente acreditar) que a sua filha morta está
feliz. Julie Christie desmaia, de tão emocionada. E passa a acreditar na
mediunidade da mulher. O que irrita Sutherland.
Mais não contarei, não sou dado a
“spoilers”, mas o que mais me impressionou nesse filme, não muito conhecido
pelo grande público, e nem tampouco uma obra-prima (como diz Roger Ebert na
contracapa do DVD) é que ele foi muito visto por outros cineastas, com toda
certeza. É óbvio que Spielberg tirou sua garota de vermelho, em contraste com o
preto e branco de “A lista de Schindler”, da criação de Roeg. David Lynch e
Brian de Palma andaram bebendo da fonte “roeguiana” também. Você, que já viu
Lynch, verá que aquele plano em que a médium cega passa em close, olhando sem
olhar, meio em transe, para Sutherland, está naquelas estranhas videntes de
“Coração selvagem” e “Empireland” e talvez em outras partes da obra lynchiana. Sem dúvida os anõezinhos de Lynch também têm
a ver com esse filme. Roeg, por sua vez, bebeu em Hitchcock, daquele plano de
um filme inglês (não lembro qual) em que uma mulher solta um grito imediatamente
abafado e ampliado pelo som de um apito de trem. No caso, Roeg corta da casa de
campo do casal diretamente para Veneza colando o grito de Sutherland ao som de
uma broca de restauro da craquelenta igreja veneziana. Lembrar a importância de
uma broca para De Palma.
Essa Veneza “sangrenta” me
pareceu mais verossímil que aquela, toda linda, de tantos outros filmes
consagrados, como “Morte em Veneza” e “Quando o coração floresce”. É uma cidade
escura, cheia de labirintos, em que Sutherland vê, e perde de vista,
continuamente, a filha com sua capa vermelha – a menina vai trafegando por
aqueles desvios, passagens de gôndolas, ruelas, portas e janelas sombrias e ele
a persegue como pode, até se deparar com a verdade. E uma imagem soberba nos
mostra Julie Christie, com as duas irmãs, avançando numa gôndola, as três de
luto.
O filme, na verdade, é o
angustiante estudo de um casal que perdeu um elo fundamental – a filha – e se
debate entre o mundo real e o pesadelo. Uma película muito fina recobre a
fronteira entre vida e morte, entre crer e descrer no Destino e seus sinais, na
produção. Ela mereceria ser muito mais conhecida.
TILDA E TOM: UM CASAL
DE VAMPIROS PARA O NOSSO TEMPO
Bem recente, ainda saindo dos
cinemas para o DVD, é “Amantes eternos” (“Only lovers left alive”), do
consagrado (mas muito polêmico) Jim Jarmusch. Não pude ver num cinema em
S.Paulo e deve ter tido público pequeno, para já circular por aí em DVD. O
filme foi ora incensado ora criticado (acharam-no, alguns críticos, superficial
e dispersivo) e eu queria fazer minha prova de espectador, porque admiro
Jarmusch, e com uma atriz como Tilda Swinton achava que não poderia ser tão
falho.
Não é mesmo. Jarmusch acertou, e
mesmo eu tendo gostado de um filme seu como “Flores partidas”, considerando que
seu período áureo foi mesmo o de “Daunbailó” e “Dead man”, eu já não acreditava
muito nele, talvez por não ser um nome muito citado em revistas e sites de
cinema. Ele parece ter criado seu próprio universo fílmico com menos fama e
polêmica que diretores como Lynch, talvez seja mais tranquilo ou não se
interesse muito por publicidade.
O filme é um fiapo de história, e
os nomes dos personagens, Adam e Eve, Watson, Marlowe, tão obviamente
paródicos, que há uma tendência a não se levar nada daquilo a sério. E, no
entanto, mesmo tendo o olhar blasé e gozador (humor negro, bem entendido) de
Jarmusch, o filme nos pega é pelo lado melancólico, com seu grande amor pela
eternidade de um casal elitista de vampiros que não quer consumir sangue humano
(os humanos, para ele, são os “zumbis”) contaminado e se abastece ora
clandestinamente em hospitais ou em fornecedores especiais como o Marlowe (o
grande John Hurt) em Tanger. São uns “esnobes intransigentes”, como diz a chata
da irmã de Eva, que vai passar uma temporada com o casal e drena todo o sangue
de um amigo de Adam, que lhe fornece itens especiais. É posta na rua por Eva.
Com toda razão.
Quando o filme começa, o que Adam
quer é uma determinada bala para revólver porque tem um projeto de suicídio.
Eva, que está em Tanger, viaja para Detroit, onde ele mora, para dissuadi-lo.
Eles se amam há uma eternidade. E a gente não sente vontade de descrer disso.
Os atores (ele é Tom Hiddleston, excelente) dão uma credibilidade e uma empatia
profunda a esse casal, que para muita gente é uma nova tradução de Catherine
Deneuve e David Bowie do “cult” “Fome de viver”. Peço desculpas, mas acho Tilda
e Tom superiores aos dois manequins chamados Deneuve e Bowie.
Mas “Amantes eternos” tem um
“pathos” de anos 1980, mesmo assim. Na época, o cinema estava investindo em
estéticas “dark” que parecem agora coisa do passado, mas conservam sua
pungência, agora com ares anacrônicos, num mundo corroído pelo mercantilismo
cultural mais besta possível. Adam mora numa Detroit fantasmagórica, as tomadas
daquelas ruas vazias de madrugada, cercadas por grandes edifícios lívidos pelos
amarelos de luzes urbanas, são extraordinárias. Tudo parece amplo e vazio
demais. E o filme tem outro grande acerto: nada de cenas de vampirismo
explícito, só mesmo quando é necessário (e genial). Eva, por sua vez, tinha que
morar em Tanger, pátria de americanos exilados e ultracultuados como William
Burroughs e Paul Bowles.
Adam e Eve, “esnobes
intransigentes”, são o próprio romantismo de Jarmusch. Encarnam bem o ideal de
um par elegante, elitista, “cool”, que vive para o amor eterno, a literatura
(Eva não sai de Tanger sem encher a mala de livros), que cita Scott Fitzgerald,
Shakespeare etc a todo momento. Ao pedir passaportes falsos, inclusive, ela dá
seu nome como “Daisy Buchanan” e o dele como “Stephen Dedalus”. Naturalmente,
isso restringe o filme a um apelo “cult” a que a juventude atual não responde
mais. E isso torna a solidão da dupla ainda mais trágica. E há também a
costumeira letargia com que Jarmusch trata as cenas, em que longas conversas
podem se prolongar contando com que o charme das falas e dos atores supra tudo,
o que é maldição para o cinema fútil e veloz de hoje em dia. Jarmusch não fez
concessões. Fez o filme que quis. Um belo filme.
Cinema, assim, sobrevive nas
condições de coisa maldita – cinefilia, literatura, nenhuma preocupação com
ritmos dinâmicos, de “ação”, nada de astros do momento, nada de apelos para
grandes efeitos especiais, nenhuma história destinada a ocupar 40% das poucas
salas de cinema do país e sugar vorazmente a atenção dos adolescentes febris à
porta, engolindo aquela intragável pipoca amanteigada, privando-os de conhecer
o verdadeiro cinema, arriscado e poético.
Não se trata de uma obra-prima,
“Ama a.ntes eternos”. Mas da resistência de um tipo de cinema que aprecio
muito. E que sempre irei ver. Mesmo que ao lado de uns dez gatos pingados na
sala escura.
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